Texto 1
O fígado indiscreto
Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas, avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo
idiotizado.
O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacita-
mente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele
recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a mais famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção
de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o
acanhamento. - e daí proveio a catástrofe...
Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a
benévola curiosidade a que faz jus a um possível futuro parente.
Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo, um tanto desmontado com o papel de galá à
força, que lhe atribuiam. Uma das moças, criaturinha de requintada malícia, muito “saída” e “semostradeira”, interpelou-o
sobre coisas do coração, ideias relativas ao casamento e também sobre a “noivinha” - tudo com meias palavras intencio-
nais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda.
Inácio avermelhou e tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia: Quando
os doces, Sr. Inácio?
Respostas mascadas, gaguejadas, inéptas foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sem-
pre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.
Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no
equilíbrio. A culpa aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um bife de fígado sem consulta prévia. Esquisitice
dos Lemos: comiam-se figados naquela casa até nos dias mais solenes. Esquisítice do Inácio: nasceu com a estranha
idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em figado - seu estômago, seu esófago e talvez seu próprio figado tinham
pela viscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se repelindo indecorosamente o
pedaço ingerido.
Nesse dia, mal dona Luiza o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desampa-
rado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das visceras; sentiu o estômago, encrespa-
do de cólera, exigir, com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo. Mostrou-lhe que
mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalmá-lo a goles de Clarete, jurando eterna abstenção para
o futuro. Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroismo, evocou todos os martírios sofridos
pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristá pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio
fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar, de olhos arregalados, a
revolução intestina.
LOBATO, Monteiro. “O figado indiscreto”. In: Cidades mortas (1919). 142 ed. São Paulo: Brasiliense, 1972; pp. 58-62.
a) Em “O fígado indiscreto”, a imagem construída de Inácio revela uma enorme timidez, que impõe limitações às ações
do personagem. Justifique essa afirmativa, relacionando-a ao principal episódio narrado no texto. Inicie a resposta por
O fato de.
b) Transcreva do texto a passagem que insinua a falta de iniciativa de Inácio para estabelecer seu relacionamento
amoroso.
e) Em “Esquisitice dos Lemos: comiam-se figados naquela casa até nos dias mais solenes.”, identifique a palavra que
reforça a estranheza do narrador sobre o hábito da família.
d) Substituindo o verbo constar por referir-se, como ficará a frase “Uma das manobras constou do convite que ele recebeu
para jantar nos Lemos"?